Impressionantes negligenciadas: uma crônica de Dia das Artes

A sala de aula estava quente, apesar do ventilador de teto que girava sem parar no seu limite máximo de rotação. Cada aluno recebeu sua folha com uma lista de artistas impressionistas para escolher sobre o qual faria o trabalho da vez. Aquela matéria nos passava uma visão tão limitada do estudo das artes que às vezes eu cogitava desistir dela.

A cada novo movimento artístico, a história se repetia: o professor dava uma aula expositiva sobre o mesmo e passava a lista. Na aula seguinte os professores éramos nós, alunos, responsáveis por apresentar a vida e o trabalho de um dos seus representantes, tentando ao máximo analisar e criticar suas obras com profissionalismo.

Encarei os nomes ali impressos, entediada. Como sempre era composta 100% de homens, nenhuma mulher sequer para pelo menos fingir que havia algum interesse em vê-las representadas. Começamos pela arte pré-histórica e lá estávamos, no primeiro dos movimentos de vanguarda em plena virada dos séculos XIX e XX, mas eu ainda não tinha lido um único nome feminino.

Nas primeiras aulas pensei que não era por mal, afinal o mundo é mesmo um grande globo de sexismo e
desigualdades variadas. Mas à medida que os nomes que eu já conhecia foram sendo negligenciados, meu incômodo foi crescendo. Ali, porém, atingi meu limite: o objetivo da arte de vanguarda não é o rompimento com o passado? Que espécie de metodologia arcaica era aquela?

Levantei o dedo, esperando ser vista pelo “senhor professor doutor”, que me deu a palavra.

– Professor… A gente realmente precisa se restringir a essa lista? Não posso sugerir nenhum nome?

Ele me olhou um pouco admirado e respondeu:

– Mas é claro! Quem você tem em mente que deixei passar?

– Bom, é que existem tantas mulheres relevantes no impressionismo, né? – Respondi, animada. – Estudei algumas na faculdade, queria muito falar sobre Mary Cassatt, ou quem sabe Berthe Morisot, ela aparece bastante em livros de história da art…

– Não, não, não é interessante. – Ele me interrompeu. – Vamos no ater à lista mesmo, já escolheu o seu?

Ele não se dirigia a mim nesse final, e sim a um dos rapazes sentados nas mesas que ficavam à direita na sala. Eles me olhavam com ar de descaso, como se eu tivesse tentando causar um problema que não existia. Enquanto discutiam com o “senhor professor doutor” sobre as opções, senti meu rosto ficar cada vez mais vermelho. Olhei para o lado e vi Laís, a única mulher da sala além de mim, me olhando, mas não consegui ler o que seu olhar dizia.

Quando conquistei uma das poucas vagas por turma naquele curso tão disputado e conceituado de História e Crítica de Arte, me admirei bastante com a pequena quantidade de mulheres na sala. Minha graduação tinha sido bem diferente, mais balanceada… Sei lá, pensei que tivesse “criando caso” com algo à toa. Reparei também que não havia uma única pessoa negra, e mais uma vez tentei me convencer de que devia ser uma turma específica, caso isolado.

Claramente não era.

É muito louco porque quando a gente começa a perceber essas coisas, nosso cérebro liga um modo automático. Fica impossível deixar passar batido, eu sempre reparava.

Voltei a analisar a lista. Eu não queria estudar nenhum dos nomes que lia ali, por mais amor que tivesse às obras de todos. Mas teria que escolher.

Ao longe, ouvi alguém citando o nome de Édouard Manet como possibilidade e, dessa vez sem pedir autorização para fala, disse, um pouco mais alto que o esperado:

– Não, Manet, não! Eu quero ele!

O “senhor professor doutor” me olhou, sorridente.

– Muito bem, Sabrina, é assim que eu gosto. Sem inventar moda, vou anotar seu nome aqui na frente do Manet.

– Bom, já que não posso falar da Morisot, pelo menos falo do cunhado dela, né?

– Claro! – Ele disse. – Acho muito importante que você perceba, inclusive, que ela é citada nos livros que mencionou não pela sua habilidade como pintora, mas por ter sido cunhada do grande Manet…

Laís me segurou discretamente, para garantir que eu não voasse nele ali, da cadeira direto para seu pescoço ou algo assim. Mal sabia ela que aquela fala havia dado o título perfeito para minha ideia perfeita.

***

– Você problematiza demais, Sabri! – Ela ia me dizendo, enquanto a gente comia nosso costumeiro pastel pós-aula de sexta feira. – Arrumar confusão por causa de uma besteira dessas? O homem dá essa matéria há 500 anos, não vai mudar…

– Pô, mas tem que mudar! – Falei antes mesmo de engolir o pedaço de pastel que tinha na boca. – Ele vai ficar fingindo que não existem artistas mulheres até quando?

– Ah, mas é porque às vezes os homens são mais relevantes mesmo, academicamente, sabe…

– Ah, nem vem com essa, Laís! É assim que eles querem que a gente pense! Tinha mulher pra caramba produzindo, desde antes dessa época, e ainda tem. Não aceito isso, não…

Ela deu de ombros como se fosse impossível me fazer mudar de ideia, e era mesmo. Trocou de assunto e eu deixei. Me guardei para a surpresa que viria a seguir.

***

Na semana seguinte, pedi para ser a primeira a apresentar. “Não, num dá, tem que começar com Monet!” foi o que ouvi em resposta, e aceitei de bom grado a “vaga” de segunda na fila. A ordem dos fatores não alteraria o resultado.

Quando chegou minha vez, entreguei cantarolando o pen drive contendo minha apresentação. Me posicionei ao lado do quadro branco enquanto vi de relance projetado no ali meu enorme título cor-de-rosa:

“Édouard Manet: a vida e a obra do cunhado da grande Berthe Morisot”

O olhar de reprovação do professor encontrou rapidamente com o meu de vitória. Ele se viu forçado, então, a passar os minutos seguintes calado, concordando com tudo o que era dito na minha vingança pessoal e impecável em nome de todas as impressionantes impressionistas negligenciadas.

“Impressionantes negligenciadas” foi uma crônica originalmente escrita pra antologia Letras de Resistência, que seria publicada pelo Grupo Quimera em 2021, mas não chegou a sair do projeto. Uma vez que a editora nos “devolveu” a história, achei que seria legal publica-la aqui para comemorar o Dia Nacional das Artes. Vocês podem conhecer outros trabalhos que publiquei com a Quimera na página dos meus livros aqui do blog, inclusive a antologia “Corações Urbanos”, onde Sabrina voltou a ser minha protagonista!.

Aprenda mais sobre Berthe Morisot e outras mulheres impressionistas no Vênus em Arte!

Maresia

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  • Darlene

    Adorei a crônica!
    Estou fazendo T.I online e nos dias de prova presencial percebo a quase ausência de mulheres. Triste.

    Abraços!

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  • Alice do blog youcine

    Esta é a primeira vez que visito este blog, e até agora, já li oito artigos que realmente gostei. Seus posts são cheios de dicas úteis e informações interessantes. Parabéns! Seu blog é incrível.

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  • Juliana

    Oii estava navegando em seu blog e encontrei diversos artigos interessante como este.
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  • Patrícia

    O seu artigo foi muito interessante e informativo. Aprendi muito com ele. Vou salvá-lo nos meus sites favoritos para poder ler novamente sempre que quiser.

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