A campainha tocou pela terceira vez em menos de meia hora lá em baixo. Eu estava com o rosto quase grudado no espelho, segurando meus cílios postiços emplastados de cola, esperando ela secar, então só dei uma olhada pro lado, como se pudesse enxergar através das paredes, e voltei a atenção para meu reflexo quase imediatamente. Enquanto posicionava tudo no lugar ouvi risadas, seguidas de um grito que não soube identificar se era de raiva ou alegria. Só sabia que a voz que o produziu era de uma criança. Laurinha, com certeza. Fiquei feliz em saber que ela tinha chegado… Por ser a neta mais nova não importava se era natal ou outra data qualquer: vovó só sentia que a festa tinha começado quando aquele rostinho sorridente cruzava a porta de entrada.
Enquanto retocava o delineador do olho esquerdo, a porta do meu quarto abriu abruptamente e ela entrou, com a voz muito chorosa. Logo depois vinha Diego, com um sorriso de vitória no rosto que só podia significar que havia tirado a menina do sério. Ele tinha seis anos quando ela nasceu, “tirando” seu posto de caçula e gerando muitos ciúmes. Desde então um de seus objetivos de vida era causar nela o maior número de lágrimas possível.
– Lola… – ela dizia as palavras entre soluços forçados – Lola, diz pra ele que é o Papai Noel de verdade!
Guardei minha bolsa de maquiagem virando os olhos pra situação. Não era POSSÍVEL que um garoto que se gabava diariamente de ter entrado na adolescência e até já “perdido o BV” estava implicando com uma criança por causa de PAPAI NOEL! Olhei para ele colocando as mãos na cintura, o que o fez começar a pronunciar as desculpas esfarrapadas ensaiadas:
– Eu não falei que ele NÃO EXISTE, só disse que aquele lá não é o de verdade…
– É SIM! – Ela gritou se colocando de pé em cima da minha cama, então corri não só pra amenizar a briga como também para tirar aqueles pés calçados de cima do meu lençol recém trocado.
Nem era preciso explicações sobre a qual Papai Noel eles se referiam. Algum dos prédios vizinhos tinham pendurado um em tamanho natural na manhã anterior. Vovó e eu ficamos observando muito agoniadas com medo de o moço que estava fazendo isso cair de lá de cima, e ao mesmo tempo adoramos a notícia justamente porque sabíamos que nossa pequenina ia vibrar vê-lo ali. Dei uma última olhada no espelho e saí do quarto arrastando os dois junto, segurando o pulso de Diego com uma força que indicava “Pára com isso!” e tranquilizando nossa priminha, dizendo que ele estava apenas tentando irritá-la e que o “bom velhinho” já estava ali sim senhorita, esperando para presenteá-la com a Barbie Sereia que havia pedido.
Eu mudei para a casa dos meus avós cinco anos atrás, pra fazer faculdade. Meus pais moram em Ipatinga, a uns 200 km de Belo Horizonte, vim pra cá quando passei no vestibular. Minha ideia inicial (e muito iludida) era procurar um lugar só meu assim que me formasse, o que aconteceu no meio do ano, mas os três meses de desemprego e o salário baixo que recebia ao finalmente conseguir um trabalho não me permitiam sequer pensar nisso. Sem contar que meus avós estavam começando a ficar bem velhinhos, sempre precisando de alguém para levá-los ao médico, pegar algo no alto do armário e correr para comprar qualquer coisa no supermercado, então minha presença acabou sendo útil… Agora a intenção de ir embora é quase zero!
Por esse motivo eu acabo convivendo muito mais com o resto da família do que qualquer um deles entre si. Ao longo da semana meus tios e primos vêm aqui algumas vezes, para buscar correspondências, ver como estão as coisas ou mesmo “bater ponto” e não se arrepender de estar ausente daqui um tempo, quando os dois já não estiverem vivos. É bem fácil perceber quais se encaixam no último grupo. Enfim… Essa noite eu pretendia estar pronta antes de todo mundo chegar, mas fiquei no quintal com vovó batendo papo sobre nada, então já tinha muita gente quando desci as escadas, cada um colocando o que tinha levado na mesa. Meus pais e meu irmão tinham chegado na casa do meu padrinho bem cedo, mas eles esperaram para ir todos juntos. Estavam lá mais dois casais de tios, pais de Laurinha e Diego, além do irmão mais velho dela, Gabriel, que nasceu exatamente um mês antes de mim. Nós dois passamos a infância inteira esperando por férias e feriados para encontrar quando eu vinha pra cá, para poder brincar juntos. Somos meio que melhores amigos.
– Olha quem tá aqui! Feliz natal, Coisinha! – Meu irmão me tirou do chão ao me abraçar. Depois dele ouvir outras sete vozes repetindo “Feliz Natal, Lola” em menos de um minuto.
Quando Diego era bebê e não conseguia pronunciar “Aurora” direito, me chamava apenas de “Lóla”. Assim que me via cruzando a porta balançava seus bracinhos gorduchos gritando “Lóla! Lóla! Lóla!” com muita empolgação. Logo depois tia Clarinha, mãe dele, me presenteou com uma jaqueta onde havia a personagem Lola Bunny, dos Looney Tunes, estampada nas costas. Desde então a família inteira só me chama assim. Eu me irritava no início, sempre gostei de ter um nome que não dava muita brecha para apelidos, mas quando Laurinha nasceu foi uma das primeiras palavras que aprendeu a falar, logo depois de “mamã” e “cacágu” (que significava “água”), e passei a gostar, apesar de nunca deixar essa mania sair da família e passar para os meus amigos.
O resto do pessoal chegou na hora seguinte. Nos últimos dois natais tinha um sentimento de “Será que é o último?” no ar, todos temiam que um dos nossos avós fosse morrer a qualquer momento, então ninguém abria mão daquela noite. Bom, na verdade uma pessoa abriu dessa vez: tio Jojo. Ele tinha “saído do armário” (finalmente!) nove meses atrás ao apresentar o namorado pra todo mundo. Bastou uma única e longa conversa comigo para vovó aceitar, mas meu avô e dois dos tios ainda se recusavam a olhar na cara dele. Agora ele só vinha quando não tinha mais ninguém por lá (vovô se fechava na sala de televisão até ele ir embora) e sabe-se lá onde estava fazendo sua ceia… Eu sentia saudades e ódio de todo o resto só de pensar nisso!
Olhando ao redor da mesa, todo mundo sentado espremidinho em cadeiras e bancos improvisados, me vinha nos peito uma mistura de alegria e hipocrisia. Eu estava feliz em ter papai, mamãe e Augusto, meu irmão, ali comigo. Vovó também, já que ela é minha pessoa favorita no mundo, e eu até amava o vovô, mas o culpava de não ter meu tio mais querido ali. Gosto dos meus primos, uns mais que outros, e algumas tias. Mas todos os meus outros tios (e uma prima mais distante) eram nada além de parentes pra mim. Me dava raiva ouvir de longe os comentários machistas e preconceituosos que eram camuflados na conversa aqui e ali. Minha vontade era bater boca contra aquela babaquice toda, mas foquei na presença de Laura em meu colo, com seu prato encostadinho no meu me contando várias novidades infantis enquanto nossos braços lutavam para conseguir comer ao mesmo tempo.
Nós temos algumas tradiçõezinhas pra data, seguidas todos os anos. Todo mundo senta pra comer às 22h, em ponto, e quando faltam 15 minutos para meia noite rola uma oração e um “Parabéns pra você” para o “Menino Jesus”. Já faz anos que não sigo religiões, mas não me importo em continuar fazendo isso. Vovô então faz um discurso e assim que o relógio bate a meia noite corremos para a árvore para trocar presentes, independente se tiver terminado ou não… Na verdade o combinado é esse, mas ele sempre consegue dizer tudo a tempo, provavelmente de propósito. Dessa vez, porém, assim que a oração terminou, ele saiu alegando que precisava ir ao banheiro e pediu que a gente continuasse na sua ausência por causa das crianças. Na hora do discurso passamos a palavra para vovó, mas ela não sabia o que dizer e pediu ao meu pai que fizesse isso. Ele, por sua vez, jogou a bola pra minha mãe, que conseguiu até se emocionar com o que disse – e alfinetar cada um dos responsáveis por não sermos mais uma família completa. Alguns, eu entre eles, fizeram questão de aplaudir quando ela terminou exatamente quando devia terminar
Foi quando começamos a ouvir fogos de artifício sendo jogados ao céu do lado de fora. Laurinha largou minha mão, correndo desesperada, e abriu a cortina, com a boca aberta de excitação. Fomos assistir também e, quando parei ao seu lado, ela disse para mim, sorrindo:
– É o Papai Noel!
Passamos cinco minutos admirando o show pirotécnico que acontecia ali, até ouvir a porta dos fundos bater. Quando olhamos para trás a árvore de natal estava bem mais cheia do que antes. Fomos correndo conferir o que tinha sido deixado , gritando uns aos outros para que cada presente chegasse ao seu dono o mais rápido possível. Acho que ninguém além de mim reparou quando vovô entrou de mansinho com as chaves na mão e parou apoiado em meu ombro, para receber um pacote com seu nome que estava na minha mão. De fato, e apesar de tudo, um bom velhinho tinha trazido para cada um de nós um pouquinho mais da magia do natal.
E assim termina o Blogmas 2017: com um começo! Na série “Contos de Aurora” vou mostrar pra vocês a trajetória dessa nova personagem ao longo de algumas datas importante do ano. Em alguns momentos irei improvisar, em outros já sei exatamente o que fazer. O destino dela? Só o tempo dirá! Feliz natal!
Daninha
Eu simplesmente AMEI esse conto!! Estou tão empolgada com todos os que ainda virão, mas como esse é meio que o de apresentação deixa mais animada ainda!! Me apeguei à Lola!
Favor de não esquecer os próximos, obrigada, de nada!!
Ps.: i love you!!