O ar salgado sacudia meus cabelos enquanto eu sorria para a câmera frontal do celular, registrando aquele momento de alegria. Era início de tarde de uma quinta -feira e quase todo mundo que conhecia estava trabalhando, mas eu estava ali.
A mochila de viagem estava presa entre minhas pernas no chão, ainda caminhando ao meu lado depois do trajeto direto da rodoviária para aquele bar praticamente à beira mar, sem paradas no meio do caminho.
A maresia me deixou completamente despenteada, mas nem liguei. O clima era bom demais, era mais fácil respirar com tanta umidade no ar. Parecia magia, mas só de pisar no litoral eu consiguia respirar melhor, nem dava pra perceber que, no dia a dia, sou dominada pelas alergias.
Mesmo porque, pretendia me despentear ainda mais logo, logo.
Enquanto publicava a foto nas redes sociais, percebi alguém sentando na cadeira ao meu lado. Levantei o olhar e um sorriso do tamanho do mundo se direcionava a mim, sendo abertamente retribuído.
— Vai postar no Instagram? — perguntou.
— Claro! — respondi, pegando uma das duas cervejas que estava na sua mão — Não é todo dia que posso me dar um fim de semana prolongado assim!
— Tá certa… Nossa comida já vem, tá? O rapaz vai trazer.
Nossa porção de gurjão chegou logo em seguida. Comemos felizes, bebendo e conversando sobre todos os assuntos do mundo. O mar esverdeado era da mesma cor que ficavam seus olhos quando acompanhados de um sorriso ou até uma risada, eu já estava aprendendo a amar aquilo.
Droga, pensei, Lá vou eu de novo!
Sempre fui assim, alguém com uma dificuldade enorme de se apaixonar por alguém, mas que se jogava de cabeça, sem capacete, quando acontecia. Era tudo ou nada. E lá estava, acontecendo de novo, antes que tivesse rolado um primeiro beijo.
Eu já devia ter aprendido a evitar isso.
Mas era difícil, quiçá impossível.
A cada tirinha de peixe crocante consumida, o céu azul ia se tornando cada vez mais cinza, bem lentamente. O vento foi ficando mais forte e a gente fingia não perceber enquanto o papo se transformou em horas, as besteiras se revezavam com assuntos sérios e as nuvens iam se posicionando bem em cima de nós, como em uma história em quadrinhos onde elas perseguem os personagens quando menos esperam por isso.
Mas o dia tava tão gostoso que era difícil me forçar a reparar naquilo, o consciente até sabia, mas o inconsciente conseguiu, com sucesso, ter mais força ao prontamente ignorar o temporal que estava por vir.
Porque dentro de mim, já estava tudo dourado, como o pote de ouro no fim do arco-íris.
Nos conhecemos dois meses antes, num evento de trabalho na minha Belo Horizonte. Nem sei exatamente quando, mas em algum momento entre uma palestra e outra, um comentário surgiu entre nós, e de repente estávamos lá, agindo como uma velha dupla.
Na noite do primeiro dos dois dias de evento, fomos jantar em um lugar por perto. Até agora não sei se poderia considerar ou não um primeiro encontro porque, na verdade, não aconteceu nada demais.
Tinha sido um dia puxado, eu estava mais ou menos envolvida na organização de tudo, então fomos pra lados diferentes, casa pra cá e hotel pra lá, sem nem muito fôlego pra aproveitar.
Mesmo sem o fôlego, eu sentia as faíscas do fogo.
No segundo e último dia, justo quando tudo acabava e eu poderia me dar ao luxo de virar a noite se fosse preciso, o horário do seu voo de volta era a conta de sair depois dos comentários da última rodada de palestras.
Fui companhia em direção ao terminal de ônibus que levava ao aeroporto e só o que conseguimos falar foi:
— Se você voltar aqui, já sabe, me avisa…
— Você também, hein? Me manda mensagem se for pra lá!
Não estava nos meus planos viajar, é verdade, mas surgiu uma brecha que me permitiu roubar dois dias de trabalho na primeira semana de junho. Eu teria de quinta a domingo para fazer uma viagem curta regada a sol, praia e uma excelente companhia.
A previsão dizia que teria chuva todo dia, mas tudo bem, se não conseguisse as duas primeiras opções pelo menos a terceira era garantia.
Mandei mensagem avisando da minha viagem e o “Fica lá em casa!” veio imediatamente. Não chegamos a falar abertamente sobre o que aconteceria, mas os flertes via rede social, que aconteceram no dia seguinte, no mesmo ritmo que tinham acontecido durante nosso evento, me deram uma boa ideia disso.
Bom, eu pelo menos sabia o que queria, era meu primeiro passo.
Na véspera da viagem, assistimos um mesmo filme à distância, comentando sobre o enredo, falando sobre como os dias seguintes se faziam necessários nas duas rotinas conturbadas e combinando de nos encontrar no seu bar favorito assim que eu descesse do ônibus. As várias exclamações que seguiram nosso “Até amanhã!!!” era como um acordo assinado em três vias, autenticadas em cartório, que a euforia de finalmente ter a chance de viver pra valer tudo o que ficou subentendido antes.
Foi uma virada de noite difícil de dormir e muito fácil de acordar, mesmo que tenha feito isso nas primeiras horas da manhã para embarcar nas horas de viagem que viriam a seguir. Cheguei logo depois do almoço e me permitir apenas a uma ida ao banheiro, para escovar os dentes, antes de sair correndo em direção a qualquer meio de transporte que me levasse ao esperado.
Confirmando o que já era previsto pela meteorologia, um barulho de trovão nos acordou de vez para o que já ameaçava acontecer e fizemos questão de ignorar. Tratamos de chamar um carro por aplicativo para nos levar pra casa e foi a conta: assim que entramos nele, as primeiras gotas grossas, e provavelmente muito frias, começaram a cair do céu, molhando os vidros do carro e embaçando nossa visão da rua, mesmo que os limpadores de para-brisa lutassem bravamente contra isso.
— Que sorte! — eu disse, enquanto tentava, sem sucesso, fazer o aplicativo que usamos dividir o valor da viagem nas nossas duas contas.
— Ah, quer saber? Deixa pra lá, depois você me dá!
Quem era eu pra discordar daquele tom de voz cheio de manha.
A conversa descontraída se transformou em sussurros ali dentro, enquanto assuntos aleatórios foram substituídos por casos íntimos sobre nossa vida. Que estranho estar tão confortável na presença de uma pessoa que ainda era mais ou menos estranha… Os dois dias de evento pareciam ter durado semanas, as semana de espera pelo reencontro meses e aquelas poucas horas desde minha chegada várias e várias vidas coloridas.
O motorista interrompeu nossa imersão em nós mesmos reclamando do trânsito. Falou que ia virar à direita porque o caminho era melhor, recebeu como resposta que ali seria pior, a melhor opção era seguir à esquerda. Entrou conforme indicado e o engarrafamento nos pegou mesmo assim, mas era final de tarde chuvosa em cidade grande, de qualquer forma seria assim.
— Na dúvida, sempre prefiro ir pela esquerda.
Concordei veementemente. Demoramos um pouco mais que o previsto no trajeto, mas enfim chegamos ao prédio escuro. Ninguém que morava ali parecia ter retornado do trabalho ainda, porque as luzes dos corredores e escadas estavam todas apagadas. Quando sua mão voou em direção ao interruptor, acabou esbarrando nas minhas costas, o que me fez assustar, pensando que aconteceria tudo ali mesmo.
— Desculpa!
“Calma, sô, a gente tá chegando no fim das escadas, logo mais você descobre o que vai acontecer”, mais um vez conversei comigo mesma mentalmente.
O apartamento estava tão escuro quanto a parte comum do prédio estivera segundos antes. Escutei o barulho de chaves trancando a porta e, enquanto colocava a mochila no chão, o miado de um gato se enroscando na minha perna.
— Ah, esse é o Jorge. Ele é o maior safado, até mostra a barriga se você der confiança.
Eu não sabia muito bem como lidar com a pessoa na minha frente naquele momento, então achei que lidar com o gato seria uma melhor opção. Abaixei e cocei as orelhas do Jorge, que ronronou muito alto enquanto recebia meu carinho.
Meus olhos ainda não tinham se acostumado com a escuridão do lugar, mas conseguia ver seus olhinhos amarelos de pupilas dilatadas, abrindo e fechando enquanto meus dedos corriam pelo pescocinho levantado pedindo por mais enquanto deitava no chão para aproveitar a nova companhia de maneira mais confortável.
De fato, o gato safado virou a barriga pra cima ao menor sinal da minha confiança.
Em algum lugar na minha frente, ouvi a voz dizendo:
— ‘Peraí, vou acender a luz!
Mas não acendeu. No lugar disso veio em direção a mim e também se abaixou, com Jorge entre nós. Senti seu corpo perto, sua respiração levemente ofegante depois de subir três andares de escadas, a tensão entre nós tão pesada que poderia ser usada em uma prova de levantamento de pesos nas próximas Olimpíadas que vinham chegando logo mais.
— Não falei? — Sua voz estava tão baixa que eu mal conseguia ouvir — O maior safado!
Continuamos acariciando o gato enquanto nossas mãos se esbarravam no processo, aqui e ali, propositalmente sem querer. Cada vez que isso acontecia, parecia que um choque em tomada de 220 volts faiscava onde as peles se tocavam.
Senti sua cabeça repousando em meu ombro e encostei a minha nela de leve, sem me decidir se queria que a gente continuasse a noite inteira daquele jeito ou partir pro próximo passo. Jorge percebeu que era um mero coadjuvante naquela cena, porque mesmo ainda recebendo quatro mãos de carícias saiu, de repente, desaparecendo na escuridão pra deixar o casal que acabava de nascer a sós.
Foi nessa hora que a gente se beijou.
Entre a pré-adolescência até aquele começo da vida adulta, vivi um número considerável, mas ainda assim contabilizável, de primeiros beijos, mas aquele era, até então, o melhor de todos. Cheio de vontade acumulada, curiosidade aguçada, mais gostoso ainda que a tarde que tinha acabado, se é que era possível.
Meus braços agarraram seu corpo com força e o movimento foi recíproco, senti uma mão entrelaçada nos meus cabelos enquanto as minhas buscavam segurar seu pescoço, encontrando encaixes cada vez melhores onde parecia não ter como melhorar.
E pensar que aquele era só o ponto de partida…
Eu podia jurar que a gente também estava ronronando, ainda mais alto e com mais força do que o gato que tinha sumido das nossas vistas. O gosto das cervejas se misturava e eu sabia que era o que meu paladar estava sentindo, mas na minha cabeça podia jurar que era o sabor salgado da maresia.
Enquanto a gente se levantava para continuar aquela rodada de primeiros beijos no sofá, percebi que a pequena bolsa onde estava meu celular e documentos ainda estava pendurada de maneira diagonal no meu corpo. Tirei-a dali na mesma hora, jogando de lado. Não queria bolsa, telefonemas, nada para me atrapalhar naquele momento. Só queria aproveita-lo.
Eu não tinha como saber como nosso romance ia terminar. Não precisava saber.
Só me importava o fato de que começou bonito…
“Maresia” foi uma crônica originalmente escrita pra Antologia Beijo, publicada pelo Grupo Quimera no Dia dos Namoradks de 2021 e tirada de circulação um ano depois. Vocês podem conhecer outros trabalhos que publiquei com a Quimera em todos seus selos editoriais na página dos meus livros aqui do blog.
Darlene (Bob)
Belíssimo conto…
Você ainda escreve com a Quimera?
Abraços!
Emerson
Bela história de amor. Como é bom estar com quem nos faz bem não é mesmo?
Boa semana!
O JOVEM JORNALISTA está no ar cheio de posts novos e novidades! Não deixe de conferir!
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Até mais, Emerson Garcia