Antes de começar esse texto eu queria deixar muito claro que ele me dói. Sério mesmo. Sou fã de Harry Potter há 20 anos e algumas coisas que vou dizer aqui me incomodam desde então, mas não é fácil dize-las. Não por ser uma problematização daquelas 100% “classe média sofre”, até gosto de problematizar o banal, mas por ser mais uma exposição do quanto meu pensamento é muito divergente da pessoa que, até algum tempo atrás, era minha maior ídola. Claro, isso que será listado aqui não é NADA perto da transfobia escancarada (e digo até ORGULHOSA) de J.K. Rowling, mas mais uma questão de gênero nela que me seguro pra não falar sobre há tempos e decidi que não vou segurar mais… Não consigo deixar de achar uma visão meio bosta também, sabe? Como tantas outras, ainda piores, que doem ainda mais.
Lembro quando li “Harry Potter e a Pedra Filosofal” pela primeira vez, aos 10/11 anos, e adorei a Hermione de cara. Não era tão estudiosa quanto, mas sabe aquela amiga chatinha do grupo que interrompia a brincadeira pra lembrar que tinha um trabalho ainda a ser feito e repreendia quando todo mundo estava prestes a pisar um pezinho fora da linha? Essa amiga era eu! E aí li um livro com uma menina FODA com a qual me identificava, que apesar de ir se mostrando bem mente fechada (o que nunca achei legal) também era SUPER sensível e se deixava emocionar. Não é à toa que ela é minha personagem favorita até hoje, né? Lembro inclusive que naquele primeiro livro ela usa um robe rosa em uma cena específica e meus olhos até brilharam, porque é minha cor favorita e parecia mais uma coisa em comum…
Mas não era. À medida que os livros iam avançando minha cor favorita foi cada vez mais associada ao negativo na história que tanto amava. Alunos que correm pra não pegar tampões de ouvido naquele tom, um vestido de Baile de Inverno usado pela menina mais insuportável da escola até chegar, é claro, na professora com cara de sapa que tem tudo rosa, peludinho e fofo pra esconder ser o mais puro suco de tudo o que há de PODRE na sociedade. Umbridge é um estereótipo ambulante do conservadorismo preconceituoso e esdrúxulo do qual o mundo não consegue se livrar, mas também do que se espera visualmente de uma mulher na sociedade que ainda está presa aos padrões de gênero. E por mais que seja uma crítica pertinente (olha nossa ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos provando isso), começa a ficar chata quando vira constância.
Veja bem, eu vou ser a primeira pessoa a se levantar pra reivindicar contra estereótipos de gênero e a favor de uma pessoa não precisar aderir e se identificar com nenhum deles, mas estarei com a outra mão levantada também pra dar apoio em que GOSTA e QUER ser assim (desde que, claro e sempre, não exija isso do outro). Inclusive, já disse, minha cor favorita é rosa e já tive muita gente me olhando torto por isso, e pela coleção de bonecas e laços nos cabelos e tudo mais. E sendo bem sincera me parece que a J.K. Rowling seria super uma dessas pessoas, sim. Sempre que uma mulher aparece performando o que hoje vemos como feminilidade na série Harry Potter isso é um sinal de que ela é fraca, fútil, boba ou pior: má. E não é só a Umbridge, não.
Parvati Patil e Lilá Brown, tão cruéis com Hermione em diversos momentos, têm costume de destilar essa crueldade enquanto estão se arrumando, admirando sua beleza na colher. Fleur Delacour, única campeã menina do Torneio Tribruxo e tão linda que as pessoas param pra olhar, não conseguiu terminar duas de suas três tarefas e foi quem teve a pior performance na competição enquanto se preocupava com o próprio peso nessa época e em como a cunhada ficaria “horrível” em uma cor específica em seu casamento por ser ruiva depois. Tia Petúnia, que virou as costas pra irmã por não ser como ela, veste vestidos salmão nos jantares do marido e tem flores estampadas em diversos lugares de sua casa. Até Queenie, que poderia ser uma super personagem em “Animais Fantásticos” destaca-se pela sensualidade e delicadeza, mas se mostra rasa, inconsequente e manipulável mesmo sendo capaz de ler mentes.
É claro que a “masculinização” (entre aspas) exagerada dessas mulheres também é retratada como ruim, tendo a terrível tia Guida barba assim como o irmão e a pavorosa Rita Skeeter sendo uma combinação dos dois, com biotipo que soa masculino mas caracterização que é o ápice do feminino, sempre com cabelos cacheados, unhas pintadas e cores exuberantes. Nem vou entrar nessa agora porque passaria muita raiva citando a dissertação MONSTRUOSA que a J.K. publicou defendendo a própria transfobia usando pautas seríssimas ao faze-lo. Não é dia de me aprofundar em tal desserviço. É dia de pensar em como é maravilhoso ver pessoas marginalizadas sendo representadas como heroínas, claro, mas outras acabaram sendo jogadas do outro lado, e eu pessoalmente não consigo deixar de ver isso como reflexo do machismo, que associa tudo o que tem minimamente a ver com a mulher, mesmo que puramente socialmente, como inferior, sempre!
E a própria autora sofreu esse machismo, ela mesma já contou que a decepção dos pais por ter uma primeira filha fez com que fosse tratada como o “menino” da família, vestindo azul enquanto sua irmã usava rosa, e aí muita coisa já parece começar a ser explicada aqui nesse ponto. Também não vou ignorar as mulheres incríveis que temos nas histórias de Harry Potter e seu “universo expandido” assumindo fortes papéis de mãe, amiga, professora, ativista, presidenta, atleta, gênia, até mesmo a maior das vilãs… Mas chega de só conseguir enaltecê-las se tiver outras ao seu redor pra rebaixar, né? Chega de ver o que é associado a nós como negativo, quero que possa ser bem visto quando usado por pessoas de QUALQUER gênero, sexualidade, visual e, sim, caráter. Dá pra ser “feminina” (oh as aspas aí de novo), até sem ser menina, e ser incrível demais.
Pra cada Dolores Umbridge que nos faz virar os olhos temos muitas e muitas Elle Woods do outro lado, lutando pra tirar essas ideias retrógradas do foco e fazer disso aqui um planeta melhor!
Esse post faz parte do Especial 17 Anos de Sweet Luly, que serão completos em 26 de junho de 2021, onde estou escrevendo um texto para cada ano de vida do blog. Esse é o oitavo, referente a 2011, ano em que o último filme da série Harry Potter foi lançado e eu comecei a fazer parte do Potter Club BH.
Marina Menezes
Oi Luly! Interessante seu post, eu nunca li Harry Potter (só vi os filmes), mas seu post sobre o livro me passou aquela energia de garotas que desmerecem outras por serem diferentes e menos “femininas”. Aquela história do “não sou como as outras”. Talvez a J. K. tenha acabado deixando isso aparecer no livro, que é uma armadilha que pega todas nós, principalmente as que não eram muito “femininas”. No fim das contas, é só mais uma roupagem pro machismo e misoginia de sempre
E olha, que legal ver sua coleção de bonecas! Até abri o outro post pra ler com calma. Eu nunca curti muito bonecas nem nada do tipo, principalmente na minha infância (só brincava com coisas consideradas “de menino”), mas comprei esse ano uma Blythe e uma bonequinha miniatura da shopee e tô apaixonada demais. Confesso que fico até com vergonha às vezes porque sinto que cheguei tarde pra boneca, primeiro por causa da idade, e segundo porque parece que a moda das dolls de adultos ficou lá em 2015? Ando com dificuldade de encontrar conteúdo recente sobre elas, bom saber que você coleciona
OBDULIO NUNES ORTEGA
As minhas filhas tem a coleção completa de Harry Potter e agradeço bastante pelo mago ter as ajudado gostar de ler, fora o meu incentivo por ser também um leitor assíduo. Apesar disso, nunca li a série em livros. Mas creio ter visto todos os filmes, muitas vezes acompanhando as meninas, hoje mulheres feitas e cientes da luta diária contra o patriarcado. Mesmo em um mundo mágico, mas composta por humanos com poderes, as piores características da espécie ganham relevo e consequências mais graves. Por ser uma escritora, também acho que J.K. Rowling perdeu uma grande oportunidade de construir personagens femininas marcantes, além de Hermione. Já ouvi falar, porém não conheço o teor da dissertação de Rowling. O que eu posso dizer é que, tematicamente, as mulheres podem se tornar as melhores vilãs, principalmente quando descobrem o quanto os homens são patéticos, normalmente encastelados na suposta posição de força proporcionada mais pelo sistema do que pelo talento pessoal – mágico ou não. Derrubar ídolos, mudar de posicionamento, faz parte do crescimento. E crescer, dói.
Emerson
Parabéns por expressar seu ponto de vista. É incrível como a própria mídia rebaixa as mulheres né? Espero que isso mude um dia.
Boa semana!
Jovem Jornalista
Instagram
Até mais, Emerson Garcia
Nana ?
Eu reparei nisso quando fiz minha última releitura de HP no ano passado. Tive oportunidade de ler em uma LC e me fez reparar tanta coisa!
Eu mesma era super assim, acho que ainda luto contra essa visão sabe?! É muito importante a gente começar a enxergar essas coisas, só assim será possível mudar.
Samy Gontijo
Luly, belíssimo texto. Gostei muito das observações e devo te falar que eu também sentia essa tristeza ao ver o rosa, comumente associado ao universo feminino, ser tão vilipendiado graças à uma personagem abjeta como a Umbridge. Eu também quis gritar em favor das muitas Elle Woods que temos por aí. Esse foi mais um desserviço da Rowling, infelizmente. ????