O mundo se move bem o bastante sem minha arte

O mundo se move bem o bastante sem minha arte

Não lembro onde, devia ter anotado, eu sei, mas li essa frase há umas semanas e ela ficou gritando na minha cabeça desde então… “O mundo se move bem o bastante sem minha arte.” Fui esperta o suficiente para guardar os créditos: a citação é do livro “Aphabetical Diaries”, de Sheila Heti, e eu imagino que a primeira reação de quem lê seja um sentimento de impotência enorme. Afinal, estamos sempre correndo atrás do ápice, da relevância, do reconhecimento e da fama. Não vou ser hipócrita, eu também estou atrás de algumas dessas coisas, senão nem estaria aqui até hoje. Ao mesmo tempo, porém, quando você para e entende o quão poderosa é nossa insignificância e a abraça, passa a viver de forma tão mais leve que essa arte, a mesma que sem a qual o mundo consegue tão facilmente viver, flui melhor.

Meio forte a palavra usada aqui… “Insignificância.” No primeiro olhar, negativa DEMAIS, e também real. Se todo mundo é especial, como dizem, acaba que ninguém é especial. Vira e mexe surge um nome “revolucionando” em alguma arte aqui e ali, uma única pessoa que parece fazer diferença eterna para todas as outras caminhantes sobre esse planeta. E será que é verdade? Será que essa pessoa fez tudo isso sozinha mesmo, pra valerzão, vivendo em sociedade da maneira como a gente vive? Se fez, será que a gente não conseguiria tranquilamente ter chegado lá em outro momento de toda forma? Existe espaço para várias dessas pessoas dentro dos sistemas onde estamos inseridos, por acaso? E o mais importante de tudo, EU PRECISO SER UMA DESSAS PESSOAS? São perguntas que transitam entre não ter resposta e ter a resposta já implícita, e as duas opções são corretas.

Acabei trazendo isso pro blog porque, desde fevereiro, penso em como trataria aqui sobre as mudanças que venho sofrendo após sair do meu último emprego. Essa virada me colocou num microscópio muito incômodo onde quem estava na lâmina era minha relação com o trabalho. Vi ali uma mulher desesperada para saber tudo, decorar informações facilmente consultáveis, empenhada em seguir horários fora do necessário, ignorar doenças, escutar calada e buscar o que era melhor pros outros, numa tentativa inconsciente de se tornar indispensável… E aí que vem a pegadinha: todo mundo é dispensável, e substituível também! Essa coisa louca de viver pela carreira, ao invés de tê-la como um aspecto da vida, acaba nos anulando dentro de nós mesmos para, no fim, descobrir que a única pessoa que não se move bem sem você é, ironicamente, você. justamente quem fica em segundo plano na busca pela relevância externa! Incoerente, né?

Cena da série Sex and the City em que a personagem Charlotte, de cabelos castanhos cacheados e blusa preta, olha para outra mulher e diz, com expressão aliviada 'I think I'm done' (Acho que terminei).

Daqui em diante eu espero, mesmo, que a lâmina do microscópio mostre alguém que consegue se sentir bem-sucedida, tanto em empregos quanto nos projetos próprios, sem precisar abrir mão dos outros aspectos de sua vida, sabendo que vou fazer a diferença na vida de poucas e boas pessoas, mas não consigo mover montanhas. Não preciso entrar para a história da arte, me tornar a principal referência na minha pesquisa, estar na lista de ficções mais vendidas da Veja, ver meus livros usados em provas de vestibular, ter o nome citado em agradecimentos engessados, ser a melhor, nem a segunda melhor, nem estar entre as 10 melhores em absolutamente nada. Eu nem quero mais amar meu trabalho, mas quero muito gostar dele, e trabalhar com arte, e seguir com minha pesquisa, e escrever meus livros, e ser lembrada por algumas pessoas, e fazer isso bem.

O mundo se move bem o bastante sem minha arte, mas eu prefiro me mover com ela, da forma que sentir que me movo melhor.

Inventário

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Uma estrela no céu

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Trinta e cinco

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  • Laura Nolasco

    Eu adorei a frase! No meio da fotografia, constantemente fico agoniada com as estratégias de venda, planos mágicos pra “encher agenda” e etc que buscam provar pro possível cliente que seu trabalho é único, insubstituível e que o cliente PRECISA querer comprar de você mesmo que ele não tenha condições financeiras.

    Talvez seja meio tilele da minha parte, mas eu acredito mais que a minha arte vai tocar quem se identifica com ela e tem cliente pra todo mundo no mundo, eu só preciso encontrar o caminho pra chegar nos meus. E tem dado certo até agora.

    Eu fico feliz com essa nova forma de ver seu trabalho… Cresci vendo minha mãe adoescer por causa de trabalho e decidi muito nova que o trabalho não é minha vida, é só o que me dá dinheiro pra viver minha vida. É uma visão privilegiada, eu sei, e nem sempre fácil de levar, mas tento me comprometer com ela.

    Adorei o post e as reflexões. Abraços!

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  • Vitória Bruscato

    MEU AMOR, QUE TEXTO!
    Preciso dizer que o primeiro parágrafo foi coisa de outro mundo porque eu li o título e comecei a pensar sobre… e aí você escreveu o que eu tinha acabado de pensar… aí comecei a refletir em cima desse pensamento… e você foi lá e acertou de novo… EU ESTOU ASSUSTADA!

    Sobre o texto/desabafo, de fato, a gente passa a viver de forma muito mais leve quando entendemos que ninguém se importa muito com a gente, e acredito que a busca por fazer o nosso melhor dentro do que podemos (sem sermos as melhores do mundo) é constante, vamos trabalhando isso na mente aos poucos, e conseguindo melhorar isso.

    Você vai conseguir!
    ps.: amei a frase final

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  • Valéria

    Que texto profundo e me identifiquei muito também, já vivi momentos assim no trabalho e quando saí do mesmo. Lembro que na época algumas pessoas que se diziam minha amigas não entenderem quando expressei justamente isso “todo mundo é dispensável, e substituível também” e acabaram de afastando de mim, talvez por ainda nunca terem vivido essa questão com o trabalho.
    E super concordo contigo, eu quero gostar do meu trabalho e fazer o melhor que está ao meu alcance, mas isso é só mais um aspecto da minha vida.
    Ah, sobre você indicar ir a um terreiro, eu já fui algumas vezes. Sou católica praticamente, mas acredito que tudo o que falamos para o bem é bem vindo. Acho que preciso tomar um passe novamente sim hehe.
    Fique bem! ?

    https://www.heyimwiththeband.com.br/

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  • Valéria

    Ah, estou seguindo seu blog ? ainda não seguia.

    https://www.heyimwiththeband.com.br/

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  • Taís

    Que texto importante, Luly!
    De primeira pode até parecer algo pesado, querendo desmerecer as pessoas, mas na verdade isso é muito positivo. Faz com que a gente veja as coisas por uma olhar mais leve, sem nos cobrar tanto a querer sempre chegar em primeiro em tudo, ser boa em tudo. Tá tudo bem não ser. Concordo que quando a gente se dá conta de que não somos especiais, a vida fica muito mais level também!
    <3

    https://nyrtais.blogspot.com/

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